segunda-feira, 23 de outubro de 2017

IMPOSSÍVEL É NÃO VIVER

“Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível
é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver.
Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais
ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme,
longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um
único passo do seu/nosso caminho. 

Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal.
O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas
vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão de receber-nos, serão
pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também
que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a
milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta,
era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança.
Esta vida pertence-nos. 

Além disso, é magnífico estragar a festa aos poderosos. É divertido,
saudável, faz bem à pele. Quando eles pensam que já nos distribuíram
um lugar, que já está tudo decidido, que nos compraram com falinhas
mansas e autocolantes, mostramos-lhes que sabemos gritar.
Envergonhamo-los como as crianças de cinco anos envergonham os pais
na fila do supermercado. Com a diferença grande de não sermos crianças
de cinco anos e com a diferença imensa de eles não serem nossos pais
porque os nossos pais, há quase quatro décadas atrás, tiveram de livrar-se
dos pais deles. Ou, pelo menos, tentaram. 

O único impossível é o que julgarmos que não somos capazes de construir.
Temos mãos e um número sem fim de habilidades que podemos fazer com
elas. Nenhum desses truques é deixá-las cair ao longo do corpo, guardá-las
nos bolsos, estendê-las à caridade. Por isso, não vamos pedir, vamos exigir.
Havemos de repetir as vezes que forem necessárias: temos direito a viver.
Nunca duvidamos de que somos muito maiores do que o nosso currículo,
o nosso tempo não é um contrato a prazo, não há recibos verdes capazes
de contabilizar aquilo que valemos. 

Vida, se nos estás a ouvir, sabe que caminhamos na tua direção. A nossa
liberdade cresce ao acreditarmos e nós crescemos com ela e tu, vida,
cresces também. Se te quiserem convencer, vida, de que é impossível,
diz-lhe que vamos todos em teu resgate, faremos o que for preciso e
diz-lhes que impossível é negarem-te, camuflarem-te com números,
diz-lhes que impossível é não teres voz.” 

(José Luís Peixoto, in 'Abraço')
[Escritor, Portugal, n. 4 Set 1974]

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