domingo, 8 de fevereiro de 2015

EM LOUVOR DAS CRIANÇAS



“Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo
estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras,
esse reino é o da infância.
A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo,
apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos
se chama, às vezes, poesia.
Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande
formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças,
como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. 
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade
com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade,
mas a do prazer.
Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que
são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade.
Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas
à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito
aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a
bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não
diminui nem se extingue. 
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,
frequentemente, é usado como argumento para a negação da
bondade divina.
Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto
se grave indelevelmente nos vossos espíritos.
O simples fato de consentirmos que milhões e milhões de crianças
padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão
ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que
não somos filhos de Deus. 

(Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário') 
[Poeta, Portugal - 19 Jan 1923 // 13 Jun 2005]

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