quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

FRAGMENTO DO HOMEM

"Que tempo é o nosso?
Há quem diga que é um tempo a que falta amor.
Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que
era nobre foi degradado, convertido em mercadoria.
A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com
preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue,
asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à
tona é o mais abominável dos simulacros.
Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro
do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia;
a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem,
em arrancar máscaras e máscaras. 
E poderia ser de outro modo?
Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que
suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à
«sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado
implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado
que procria», como poderia a arte deixar de refletir uma tal situação,
se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue
ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida? 
Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua
contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem!
Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer
doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral,
que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade
se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito
e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto
reduzir o homem a um fragmento do homem.
Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão." 

(Eugénio de Andrade, in 'Os Afluentes do Silêncio')
[Poeta, Portugal 19 Jan 1923 // 13 Jun 2005]

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