sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O AMOR MAIOR

"O amor é preocupação. Ter o coração já previamente ocupado.
Ter medo que alguma coisa de mal aconteça à pessoa amada.
Sofrer mais por não poder aliviar o sofrimento da pessoa amada
do que ela própria sofre. 
O amor é banal. É por isso que é tão bonito. O que se quer da
pessoa amada: antes que ela nos ame também, é que ela seja feliz,
que seja saudável, que tudo lhe corra bem. Embora se saiba que o
mundo não o permite, passa-se por cima da realidade, do raciocínio
do que é possível, e quer-se, e espera-se, que Deus abra, no caso
dela, uma exceção. 

A paixão pode parecer mais interessante. Mas irrita-me que se
compare com o amor. Como se pode comparar dois sentimentos
que não têm uma única semelhança? Se o amor e a paixão coincidem,
é como a cor do céu e do mar num dia de Verão — é uma alegria, mas
nada nos diz acerca do que distingue o ar da água. 
Dizer que o amor pode começar como paixão é uma forma falaciosa
de estabelecer uma continuidade entre uma e outra, geralmente
pejorativa para o amor, que é entendido como um resíduo da paixão,
uma consequência menos alterosa, mas mais profunda, menos excitante
mas mais eterna. 
O amor começa pelo amor. É o céu. O céu foi criado primeiro. A paixão
é um simples impulso físico, material, mensurável, explicável por todas
as ciências da atração. É o mar. O mar está mais perto de nós. Podemos
chegar ao fundo dele. A diferença entre o amor e a paixão é como a
diferença entre a cosmologia e a oceanografia. O mar tem fim, tem peso,
tem vida. O céu não tem limite. O céu é dos astrônomos e dos poetas,
que sabem que hão de morrer sem percebê-lo. O mar é dos cientistas e
dos observadores, que podem passar a vida dentro dele, sabendo que é
finito e perceptível. O céu, como o amor, tem Deus acima dele. O mar,
como a paixão, tem o Homem lá dentro. Compare-se o efeito que os
anjos têm sobre nós com o que têm as sereias e perceber-se-á a distância
entre a religião e a mitologia. A religião é uma coisa de Deus, do amor
— a mitologia é uma coisa de pessoas feitas deuses, de paixão. 

Como coincidem tantas vezes amor e paixão, é preciso isolá-los para não
confundi-los. Basta responder à velha pergunta, sem responder depressa,
com as velhas mentiras com que nos enganamos uns aos outros: «Se essa
pessoa só conseguisse ser feliz amando outra, seria capaz de desejar que
isso acontecesse, custasse o que me custasse?» Só quem ama responderá
que sim. Imediatamente. Porque o amor é claro, é inevitável e, para além
do mais, é um dom maior, maior que o amor-próprio, uma dádiva que
ultrapassa as privações e o sofrimento." 

(Miguel Esteves Cardoso, in 'Explicações de Português') 
[Crítico/Escritor/Jornalista, Portugal, n. 25 Jul 1955] 

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