sexta-feira, 29 de maio de 2015

O ENCANTO DA VIDA

“Todas as noites acordado até desoras, à espera da última cena
de pancadaria num jogo de futebol, do último insulto num debate
parlamentar, do último discurso demagógico num comício
eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última
farsa no palco internacional.
Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha e a
imprudência impõe.
Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o descobrir. 

Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de
lhe prefigurar os imprevistos.
O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem.
A violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e
o exibicionismo não têm limites. Felizmente que a abnegação,
a generosidade e o altruísmo também não.
E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela
ser previsível. Nem no mal nem no bem.
E não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz
dos acontecimentos. 

Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor,
sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes
e os defeitos humanos, acabo por concluir que soletro ainda o
á-bê-cê da realidade.
Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem.
Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento
meu conhecido, que durante muitos anos procedeu como tal e,
como tal, o tratei sempre de pé atrás, generosa e secretamente
subsidiava um asilo de infância desvalida.” 

[Miguel Torga, in 'Diário (1993)']
[Escritor/Poeta, Portugal, 12 Ago 1907 // 17 Jan 1995]

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